“Mirtilo de hoje rendeu muito!”, exibe Camila, nome fictÃcio, em seu perfil no X (Twitter). Em quatro fotos, ela mostra tudo o que furtou em um dia: roupas, perfumes, sabonetes, esmaltes e itens de maquiagem, totalizando R$ 1.242,60.
Ao lado de seu nome no perfil, com foto de uma celebridade sul-coreana, ela usa um emoji do mirtilo. A frutinha azul é o código adotado pela comunidade secreta autodenominada “clepto” para se reunir na rede social. Através de emojis como o do mirtilo, do rato ou da cesta, membros do grupo ostentam suas aquisições ilegais de uma tarde no shopping ou uma ida à s Lojas Americanas e similares.
No Brasil, o artigo 155 do Código Penal define o crime de furto como “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Quem furta pode pegar de um a quatro anos de reclusão e multa. Mas não é só no Brasil que a prática vem se expandindo entre os jovens. A comunidade clepto é internacional e reúne principalmente garotas, a maioria adolescentes ou no inÃcio da vida adulta.
Usando perfis falsos, elas trocam dicas de como despistar seguranças, encontrar o ponto cego de câmeras, desmontar alarmes, costurar fundo falso em bolsas e casacos e até como proceder com as autoridades caso um flagrante aconteça.
A comunidade mirtileira tem ética, estética e etiqueta. Comércios pequenos, por exemplo, devem ser poupados. “Mirtilar em lojas pequenas, mercadinhos e brechós é mau caráter. Cada venda é uma conquista para eles”, afirma uma jovem em um post na comunidade.
Já a estética envolve roubar maquiagens com muito brilho, perfumes de grife, lingeries rendadas, roupas com laços e frufrus no estilo otaku da cultura pop japonesa, ursinhos de pelúcia, itens de papelaria, doces importados, tudo muito rosa e lilás se for da Hello Kitty, melhor.
Ana (nome fictÃcio), 19, de Goiânia, conta que costuma roubar lojas desde a infância, mas que há quatro anos virou “mirtileira”. “Quando me dá vontade de pegar algo, eu pego. Mesmo que não use. Depois sinto remorso”, relata ela, que já chegou a voltar à s lojas para devolver o que havia afanado.
Seu maior furto foi de R$ 800 em roupas na Youcom. “Na hora fiquei bem feliz, mas depois senti culpa e acabei doando tudo”, relatou ao F5. Para Ana, a maioria dos casos é diferente do seu. Ela acredita que a comunidade incentiva as jovens a cometerem os furtos. “Muita gente de lá foi influenciada”. Ana conhece vários membros da comunidade que já foram flagrados. Na maioria das vezes, são impedidos de voltar à s lojas, mas voltam a praticar os furtos em outros locais.
A espanhola Sam (nome fictÃcio), de 21 anos, conta que ficou “levemente viciada” em roubar lojas aos 16 anos. “Me sinto trouxa quando pago por alguma coisa”, afirmou ela à reportagem. Em uma postagem recente, ela mostra tudo o que furtou em um dia: lingeries rendadas, chocolates e acessórios de cabelo.
A alemã Julia (nome fictÃcio), de 18, começou a se aventurar na “mirtilagem” por influência de uma amiga. “Passei a postar [o produto dos roubos] porque precisava de algum conteúdo para publicar. E também porque gosto de ver o que as outras pessoas pegaram para me comparar. Acho que sou boa nisso”, diz.
DESEJO DE PERTENCIMENTO
A CID (Classificação Internacional de Doenças) F63.2 descreve a cleptomania como um transtorno caracterizado pela “impossibilidade repetida de resistir aos impulsos de roubar objetos”. Segundo a descrição do transtorno no DataSUS, “os objetos não são roubados por sua utilidade imediata ou seu valor monetário; o sujeito pode, ao contrário, querer descartá-los, dá-los ou acumulá-los.”
“Chamamos de transtorno do controle do impulso”, diz o psicólogo Gustavo Zancheta à Folha de S.Paulo. É um transtorno raro, ocorre mais em mulheres e pode vir acompanhado de comorbidades como depressão, ansiedade e TOC [transtorno obsessivo compulsivo], explica. “É o impulso irresistÃvel, persistente e repetitivo de roubar”.
Para ele, no entanto, o fator ‘influência’ tem um peso relevante em casos como esse, de comportamentos de massa. “As redes sociais determinam padrões. Não descartaria a hipótese de que essas jovens possam cometer esses roubos para experimentar o desejo do pertencimento”, afirma. “A cleptomania em si é rara de acontecer. O desejo de pertencimento pode acabar extrapolando os limites do razoável e subjugando questões morais.”
OUTRO LADO
Parado na porta de uma loja de bijuterias na rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, o segurança Manoel Messias da Silva, 31, passa o dia de olhos atentos à s prateleiras e clientes. “Eu já percebo a intenção de roubar só pelo jeito como a pessoa olha para mim”, diz ele, que está há dez anos na função. Apesar de presenciar furtos ou tentativas com alguma frequência, ele raramente recorre à polÃcia. “A gente resolve aqui mesmo e pede para nunca mais voltar na loja”, diz.
Em um comércio vizinho, de acessórios e cosméticos, a vendedora Yali de Andrade, 29, conta que, há algumas semanas, sua colega flagrou um homem colocando três perfumes dentro da mochila. “Apanhou e ainda saiu sem a mochila”, conta. A loja, que também tem segurança particular, não costuma envolver a polÃcia. “Se roubar, toma um cacete”, assume Yali, sem qualquer cerimônia.
Os lojistas e seguranças afirmam que não há tratamento diferenciado de acordo com o perfil quem pratica o furto. Para a vendedora Yali, no entanto, mulheres costumam ser mais discretas. Muitas vezes, ela só percebe a ausência de produtos quando vai repor na prateleira.
Nas lojas Americanas da mesma rua, o funcionário Jonathan dos Santos, 22, conta que, em novembro passado, precisou acompanhar policiais ao 8° DP para prestar queixa em um caso de flagrante de roubo de chocolates. Segundo ele, os ladrões costumam entrar bem vestidos e arrumados.
Na comunidade “mirtileira”, as lojas Americanas figuram com frequência como local favorito para os furtos. Procurada para comentar o caso, a rede afirmou, via assessoria de imprensa, que “conta com protocolos de monitoramento e segurança que são acionados em casos de furtos e roubos e que, diante dessas ocorrências, dá ciência aos órgãos de segurança pública. A companhia também colabora com as investigações conduzidas pela autoridade policial.”
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo enviou a seguinte nota: “A Secretaria da Segurança Pública destaca que o combate aos crimes patrimoniais é uma das prioridades da atual gestão. O policiamento ostensivo e preventivo realizado pela PolÃcia Militar segue intensificado em todo o Estado, por meio de diversas operações, como a Impacto, assim como o trabalho investigativo da PolÃcia Civil”.
A SSP vai além e reitera a importância do registro do boletim de ocorrência, “para que os casos sejam devidamente investigados e, consequentemente, auxilie as forças de segurança a mapear e direcionar esforços nos locais com maior incidência criminal. O empenho das forças policiais resultou na redução de 6,2% dos roubos em 2023, na comparação com 2022.”
Por: Anahi Martinho – FolhaPress