Disputa por evangélicos atinge auge e leva Janja e Michelle à linha de frente


 Com dedo em riste, o pastor de uma Assembleia de Deus de Botucatu (SP) adverte: quem ali votar no Lula (PT) “não merece tomar a ceia do Senhor”. O melhor que esse crente faz é se abster de comer o pão e tomar o cálice (em geral, suco de uva), um reconhecimento simbólico do sacrifício de Cristo, diz.


“Ele falou lá numa roda de saravá, quando recebeu lá pipoca na cabeça, que ‘os demônios agora estão me incomodando’. E você tem coragem de falar que vai votar num homem desses?”, questiona.


O líder religioso se refere a um vídeo, de 2021, do petista num ritual de candomblé. Lula nunca afirmou que estava possuído, mas passeia por igrejas evangélicas uma fala dele tirada de contexto. Disse, na verdade, que “redes sociais do bolsonarismo” espalhavam “que o demônio estava tomando conta de mim”.


Adversários conjuram a narrativa de um Lula mancomunado com as trevas desde o primeiro pleito do Brasil redemocratizado, o mesmo em que evangélicos começaram a ganhar saliência eleitoral. O segmento atinge agora, neste 2022 polarizado entre o petista e Jair Bolsonaro (PL), o ápice de seu engajamento político, num confronto que põe no ringue eleitoral a primeira-dama Michelle Bolsonaro e a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, mulher de Lula.

O embarque desse bloco na política se inicia na Assembleia Constituinte que formulou a Constituição de 1988. Forma-se ali a primeira bancada evangélica, que deu “banho bíblico” no presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, nas palavras do próprio.


É dessa época “Irmão Vota em Irmão”, de Josué Sylvestre, assessor parlamentar ligado a outra Assembleia, a de Deus. O livro sumariza o novo Zeitgeist evangélico: “Crente vota em crente, porque, do contrário, não tem condições de afirmar que é mesmo crente”, escreveu Sylvestre.


“Lideranças evangélicas, sobretudo pentecostais, aproveitaram o contexto de abertura democrática para investir no ativismo político”, afirma Ricardo Mariano, professor de sociologia da USP que nos anos 1990 cunhou o termo “neopentecostais” em sua tese de mestrado. “Desde os anos 1970, pastores têm sido assediados por candidatos que, quando eleitos, descumpriam frequentemente promessas feitas a eles. Isso, contam, os incentivou a lançar candidatos próprios.”


Igrejas passaram, segundo Mariano, a “recorrer, estrategicamente, à sina vitimista de minoria religiosa perseguida, alegando a urgência de defender a liberdade religiosa, a moralidade cristã e seus interesses de ataques de supostos inimigos por meio da eleição de representantes da igreja”.


Exemplo bissexto de pastor a apoiar Lula contra Fernando Collor em 1989, Silas Malafaia conta que, quando garoto, ouvia pastores pregarem “que política e TV eram coisa do diabo”. Cita a passagem bíblica “dai, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” para explicar por que “não conseguia, pensando com meus botões, entender a razão disso”.


Como televangelista, trabalhou “para dar consciência política aos evangélicos”. A velha guarda pastoral, segundo Malafaia, “só pregava céu e vida eterna, como se nós não estivéssemos num contexto terreno”.


Uma fake news vintage, reeditada em 2022, é a ideia de que o PT vai fechar igrejas. Já na eleição de 1989 falava-se que Lula faria isso, num conluio com a Igreja Católica para exterminar a liberdade religiosa dos evangélicos.


Na véspera do primeiro turno, fiéis da Igreja Universal cantaram “o diabo na corda bamba, vamos collorir, vamos collorir”, em vigília comandada pelo bispo Edir Macedo, que usava uma camisa com o nome de Collor.


Quem vestiu a camisa, em 2010, foi o deputado Marco Feliciano (PL-SP). Na dele, lia-se “sou cristão e voto em Dilma”. Em culto, ele fez um mea culpa: “Como um papagaio, eu repetia: o PT vai fechar as igrejas do Brasil. […] Oito anos atrás, Lula era um demônio. Mas Lula foi eleito e nenhuma igreja foi fechada”.


Feliciano e Macedo estavam com Dilma Rousseff na disputa que laureou a petista. Hoje, a igreja do bispo impulsiona a campanha de que o cristão de esquerda é uma anomalia, e o deputado voltou a repetir que o PT é uma ameaça. O fechamento de templos na pandemia, por motivos sanitários, ajudou a inflar o “risco Lula”.


Feliciano justifica seu reposicionamento assim: o petismo tem “compromisso com pautas identitárias”, e uma das formas de calar igrejas é colocar uma mordaça nela. Ele diz crer que, num governo petista, pululariam “leis impedindo pastores de afirmar que sodomia é pecado ou obrigando religiosos a oficiarem ‘casamentos’ de pessoas de mesmo sexo”. A campanha lulista não dá nenhum sinal de que isso vá acontecer.


Para o atual pleito, o católico Bolsonaro colocou na linha de frente de sua campanha a evangélica com quem casou em 2013, sob a bênção de Malafaia. Michelle é tida como um contraponto mais açucarado à imagem do presidente. E saiu melhor que a encomenda, segundo aliados.


A primeira-dama sabe falar a linguagem dos evangélicos, aponta o apóstolo César Augusto, líder da igreja Fonte da Vida. “Ela não está fingindo em época de campanha, como percebemos em muitos políticos. Sabemos diferenciar autenticidade.”


Malafaia ecoa a boa impressão. “Michelle ganha protagonismo por ser mulher, evangélica, saber se posicionar, ter boa aparência”, diz.


Já Janja é uma aposta do PT para cativar eleitoras num duelo entre dois homens que entraram no imaginário popular como “cabras-machos”. Pastores bolsonaristas, contudo, consideram que a socióloga tem um passivo religioso.


Não só exala ares de mulher independente, o que lhe aproxima de um feminismo rejeitado por muitas evangélicas, como postou foto em que posa ao lado de imagens de orixás.


Michelle havia replicado a gravação em que Lula ganha banho de pipoca de líderes do candomblé. Mas não por tolerância religiosa: o vídeo associa essa religião às trevas.


O QG lulista tenta correr atrás para não deixar Bolsonaro se distanciar ainda mais do ex-presidente no campo evangélico, que representa 1 em cada 4 eleitores.


Lula vem testando vacinas contra o campo minado preparado para ele não reaver votos evangélicos que já lhe pertenceram –como ao dizer, na largada de sua campanha, que Bolsonaro “é possuído por demônios”.


Também trouxe para seu time o pastor Paulo Marcelo, que se aliou ao PT e foi do Gideões Missionários da Última Hora, congresso pentecostal que catapultou nomes como Feliciano, de quem é amigo.


 Banda B

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